28 de agosto de 2021
Alice Sousa, jornalista e participante do programa Diversidade nas Redações
Oi, tudo bem por aí? Me chamo Alice Sousa e faço parte do time de repórteres do Diversidade nas Redações, programa de treinamento da Énois.
Recebi o convite para colaborar com a Diversa, tendo a difícil tarefa de ousar falar sobre um tema que já ocupa uma forma na nossa cabeça: transgeneridade. Isso porque a ideia geral que conhecemos de pessoas transgêneras é pela subversão de um corpo e a violência empenhada nos casos de assassinato.
Na experiência do programa Diversidade nas Redações, como repórter d’O Povo, eu já vinha trabalhando o tema, analisando os casos de violência e acompanhando alguns desdobramentos na Justiça cearense.
Mas quando contei a história de Raul Malu pro jornal O Povo foi um desafio. Na data da entrevista, ela tinha seis anos e a família descobriu a transgeneridade aos quatro. A priori, queria conhecer a família. Esse não é o tipo de entrevista que se faz pelo telefone. Com todos os cuidados possíveis, estive uma manhã na casa de Malu, com sua mãe, seu pai, seu irmão e seus avós.
Nos registros dessa entrevista, houve um diálogo inicial com Yandra, mãe de Malu, que sabe bem como pessoas trans são retratadas na mídia. O maior desejo de Yandra se revelou da maneira mais simples: ela queria ter o direito de contar a história da sua família, sem ter que se esconder através de nomes inventados com asteriscos do lado. O principal desejo daquela família era dar a possibilidade de Malu apenas ser naquela história, como qualquer criança deve e pode.
A história de Malu desconstruiu em mim tudo aquilo que eu não sabia sobre a convivência com uma criança ou adolescente trans. Começando com os brinquedos. A primeira coisa que percebi quando entrei na casa foram os brinquedos espalhados no chão. A maioria deles cor-de-rosa, que Malu herdou do irmão, um adolescente que se identifica como homem cis hetéro e que desde criança viajava na imaginação com a ajuda dos pedaços de plástico cor-de-rosa. O arsenal de livros na sala da família também chamou minha atenção. Segundo Yandra, a biblioteca da família começou a ganhar os títulos que explicam melhor a presença da transgeneridade na infância. Foi aí que percebi que precisava também contornar o mesmo caminho para contar essa história com alguma propriedade.
O Ceará, onde Malu está crescendo, é um estado que ganhou as manchetes do mundo inteiro por ter sido o berço onde Dandara dos Santos nasceu e morreu, com requintes de crueldade, na rua, sob as câmeras de seus algozes. Neste cenário, é uma luta constante para as famílias imaginarem um futuro para seus filhos.
Assim, o desejo latente de Yandra de mostrar que sua família existe, de maneira tão disruptiva e tradicional, tinha um motivo: ela se acostumou a ver pessoas trans sendo notícia em veículos tradicionais a partir da violência; e uma hora Malu vai crescer e sair debaixo da asa da mãe.
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No jornalismo, é a partir do enquadramento que a ou o jornalista escolhe sob qual das inúmeras perspectivas vai tratar determinado assunto. Esse não é um conceito novo. Surgiu na década de 80, com um pesquisador chamado Robert Entman. Dentro desse exercício, quase que intrínseco à profissão, inserimos nossos pontos de vista de maneira, também inerente, pois o modo como produzimos essas notícias envolve nossos valores pessoais e profissionais, como explica Márcia Veiga em “Masculino, o gênero do jornalismo”.
Além de contar essas histórias puxando pelos aspectos em comum que crianças transgênero têm com toda a sociedade, também é preciso ficar atenta ou atento às políticas públicas destinadas para essa população. É preciso impregnar na nossa cobertura e no nosso imaginário a ideia de que crianças trans existem, como qualquer outra criança.
Se você quiser continuar esta conversa, é só me escrever em: alicesousa205@gmail.com
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Como falar sobre infância e adolescência trans
Estude o tema. Antes de começar a apuração, busque referências sobre o tema. Livros, textos científicos, outras matérias, pessoas e instituições da comunidade podem te ajudar a compreender conceitos básicos e a não reproduzir estereótipos. Isso ajuda a ter uma ideia de como alguns setores da sociedade já lidam com o assunto de forma natural. As instituições podem ser parceiras, inclusive, para indicar fontes.
Produza sem pressa. Essa é uma apuração que requer cuidado, então faça com tempo. Se puder, tire um dia ou mais apenas para escrever. Também é válido passar o máximo de tempo possível com as famílias, acompanhando a rotina delas. Converse com as crianças e adolescentes, conquiste a confiança deles e os deixe à vontade. Conte para eles sobre como será a matéria.
Escute as preocupações das famílias. Como o tema é sensível e estamos falando de crianças e famílias inseridas no contexto da comunidade trans, as pessoas entrevistadas podem perguntar como a história delas será abordada na matéria. Considere essa preocupação e busque envolvê-las nas etapas da produção, para que elas sintam confiança e respeito com o que será publicado.
Questione o conceito “tradicional” de família. Na entrevista, pergunte sobre aspectos que envolvem a ideia de família. Não fosse a presença de uma criança trans nessa família, ela se encaixaria dentro dos parâmetros do que é considerada uma família tradicional? Mostre que a família tradicional é aquela feliz, com a presença de toda a estrutura familiar por perto, incluindo avós e amigos.
Busque o coletivo. No jornalismo, normalmente buscamos numa pauta aquilo que há de particular, único, diferente. Neste caso, faça o caminho inverso. O que há aqui em comum com aquilo que se considera padrão? Está tão distante assim? Que referências existem para mostrar a quem não esteja familiarizado com esse universo para ajudá-los a reconhecer ali a existência do que se convenciona como família?
Imagem. A decisão editorial sobre citar nomes e mostrar fotos que identifiquem as crianças ou famílias deve ser, acima de tudo, uma decisão da família. Os jornalistas precisam deixar os entrevistados absolutamente à vontade para decidir.
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