11 de agosto de 2021
Glória Maria, produtora de formação da Énois e moradora de Paraisópolis
Salve! Espero encontrar você bem apesar de nosso cenário político. Sou Glória Maria, tenho 22 anos, e sou produtora de formação da Énois e moradora de Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo.
Não sei se já viram, mas na semana passada, durante o 24o Redação Aberta, lançamos o Manual de Jornalismo e Território: questões da primeira infância e adolescência (aqui você pode baixar a versão digital ou se inscrever para receber o livro na sua casa, tudo de graça).
Um material didático para quem quer saber mais sobre seu território, sobre como noticiar a partir de suas vivências, o manual se debruça em como aprofundar a cobertura da primeira infância e adolescência – e como políticas públicas dentro desse tema impactam a sociedade, as periferias e as múltiplas infâncias nos territórios brasileiros. Tem conteúdo teórico e material de apoio prático sobre noções básicas de jornalismo, lei de acesso à informação, jornalismo de dados, legislação de defesa da criança e dos adolescentes, além de erros e acertos na cobertura jornalística.
Durante um ano e meio, acompanhei o desenvolvimento dos conhecimentos registrados no Manual de Jornalismo e Território. Como produtora, ajudei a pensar e organizar as formações, além de participar e refletir sobre os encontros que realizamos. Trocamos com jornalistas e comunicadores de diferentes regiões do Brasil e pudemos entender como fazer jornalismo varia conforme o lugar onde você está.
Um dos assuntos que mais me interessou foi apresentado nos dois últimos ciclos de Jornalismo e Território, voltados para as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste: o de como fazer um jornalismo anticapacitista.
Se você não está familiarizada ou familiarizado com o termo, capacitismo é a discriminação sobre pessoas com deficiência (PCDs) e neurodivergentes (NDs).
Você já cobriu, ou já trocou ideia sobre esse tema?!
Tive contato com o tema pela primeira vez em uma das minhas experiências enquanto jornalista em Paraisópolis. Era uma pauta que produzi para o portal Kondzilla sobre a diversidade de pessoas no funk e nos bailes. Minha fonte era Beatriz Silva, que na época tinha 18 anos. A Bia, uma jovem surda que antes da pandemia frequentava o baile da Dz7, aqui na quebrada – aquele mesmo onde há cerca de um ano e meio atrás aconteceu uma chacina que matou 9 jovens, vale lembrar. Lembro de ela me relatar que algumas pessoas não viam sentido no fato dela frequentar o baile funk.
No dia em que fui entrevistá-la, passei o caminho inteiro pensando como se daria essa conversa. Fui tomada por um sentimento de frustração já que eu não sabia usar a língua de sinais e uma barreira comunicacional era um abismo entre nossos mundos igualmente periféricos, mas com vibrações distintas.
Chegando lá, contei com a grande interlocução de seu irmão Wesley Reis, que já a acompanhava nos rolês do baile funk. Foi uma experiência diferente para mim, gerada pelo incômodo em não saber me comunicar diretamente com Bia. Continuei pensando muito sobre isso. Infelizmente, foi um choque de realidade que me fez perceber a necessidade de aprender Libras (Língua Brasileira de Sinais) para me comunicar com pessoas surdas ou com audição reduzida durante as coberturas na minha quebrada.
No dia da entrevista, para além do intermédio do Wesley, minha comunicação com ela se deu muito pela troca de olhares, e pela leitura de suas expressões. As expressões de revolta dela me mostraram o quanto as pessoas subestimam seu corpo, sua presença nos espaços, sejam eles de lazer ou até mesmo de trabalho. Quando eu ia fazer uma pergunta para o Wesley perguntar em Libras para ela, eu sempre olhava nos olhos da Bia, e isso aliviava um pouquinho a frustração que eu estava sentindo.
Mas ainda assim, tive muita dificuldade na apuração. Acabou que algumas perguntas não foram respondidas, o que fez com que eu me desdobrasse em trocas de conversas pelo WhatsApp com o Wesley. Como a Bia foi alfabetizada em Libras, ela só sabia escrever coisas básicas como seu nome e idade. Isso intensificou mais ainda a reflexão do quanto eu, enquanto cidadã e jornalista, estava tão distante de alguém que é vizinha. Alguém que também faz parte da diversidade, do todo.
O jornalismo como ferramenta de luta
Na Énois, nosso contato com esse tema é muito recente. Abordamos em nossos encontros na formação de Jornalismo e Território como o olhar para pessoas com deficiência afeta a nossa apuração como jornalistas. Percebemos a importância de atitudes anticapacitistas, dentro do universo da comunicação e do jornalismo. Aliás, foi durante esses encontros que aprendi que a Libras é nossa segunda língua oficial.
Adriana Monteiro, advogada e ativista pelos direitos das crianças, realizou uma formação rica para os comunicadores periféricos do programa. Em sua abordagem, exaltou que o capacitismo é um problema estrutural, como outros que nossa sociedade enfrenta.
É preciso combater o ciclo da invisibilidade. A mesma coisa que acontece muito com as pessoas negras, mulheres, e outros grupos de não ter lugar na mídia também acontece com as pessoas com deficiência. Ciente do seu capacitismo e da estrutura social, o papel que você desempenha enquanto sujeito que trabalha com mídia, informação e notícia é fazer diferença na vida das pessoas com deficiência no Brasil”, provocou Adriana.
No Brasil nós temos uma população de 46 milhões de brasileiros declarados com algum tipo de deficiência, de acordo com o Censo 2010 do IBGE. Isso significa um quarto da nossa população. Uma minoria social invisibilizada pelos agentes públicos e também no jornalismo, que muitas vezes não as ouvem como fontes, especialistas e protagonistas de sua própria história. Quando a imprensa realiza a cobertura de pessoas com defiência ou neurodivergentes, geralmente toma as própria condições das pessoas como ponto de partida (o que reforça a discriminação), ou o enfoque da pauta é sobre superação e heroísmo. As pessoas com deficiência geralmente estão associadas a “anjos”. São infantilizadas ao serem romantizadas. Isso é um problema porque reproduz a ideia de que a deficiência precisa ser superada, quando a chave para a diversidade é a inclusão.
Luciana Viegas, pedagoga e idealizadora do movimento Vidas Negras Com Deficiência Importam, também foi uma das facilitadoras que nos ajudou a refletir sobre como fazer uma cobertura anticapacitista.
Luciana ressaltou exemplos de manchetes que reforçam a ideia de que a pessoa deficiente é inferior. “Títulos como: ‘Adolescente autista supera e chama atenção por praticar vôlei’ e ‘Mãe que cuida de três filhos com deficiência em SP transforma superação em livro’ reforçam o capacitismo”, apontou ela.
Como profissionais da comunicação, devemos prezar pela acessibilidade comunicacional, levando essa pauta para dentro dos veículos, propondo pautas inclusivas, ouvindo essas pessoas para além da deficiência.
Abaixo, reúno alguns aprendizados compartilhados em nossos percursos formativos. Se você também tem inquietações sobre o capacitismo na cobertura jornalística, escreve pra mim e vamos trocar uma ideia: gloria@old.enoisconteudo.com.br
Aprenda a escutar. Quantas pessoas com deficiência você conhece? Acompanha ou assiste? Aprenda com essas pessoas e pesquise! Se informe, para não reproduzir notícias e falas capacitistas em suas reportagens e conteúdos. Lu Viegas diz: “Escutar é acolher toda forma de comunicação!”.
Torne seu conteúdo mais acessível. Você parou para pensar sobre o formato de seu conteúdo? Não só descrição de imagens como legendas em mídias de vídeos, mas acessibilizar a escrita também facilita o processo.
Faça versões do conteúdo com linguagens mais simples. Adote um tipo de texto que usa palavras comuns, frases curtas e estrutura clara para tornar as informações mais acessíveis às pessoas com deficiências intelectuais e de desenvolvimento.
Cuidado para não ser infantilizante. Ao adotar uma linguagem simples, não se presume que alguém com deficiência irá querer ler apenas essa versão. Ofereça todas as versões do texto.
Diversifique as fontes. Evitar que as únicas fontes entrevistadas sejam a família, advogados, médicos e escolas das pessoas com deficiência.
Contextualize as histórias. Explique e contextualize que os casos não são particulares e reforce que há um sistema que permite determinadas violações contra pessoas com deficiência. Seja didático ao mostrar as estruturas, leis, órgãos e políticas que deveriam existir ou estar funcionando e aponte como isso dificulta ou impede a vivência das pessoas com deficiência.
Dar valor ao tema. Não pense nas pautas sobre deficiência como um favor, uma obrigação ou um apoio na falta de outras pautas. Insira o tema na agenda cotidiana do veículo, convocando a equipe a pensar sobre ele.
Evidencie as falhas. Mostre quem são as autoridades que estão falhando na oferta de políticas públicas para pessoas com deficiência. Traga as estruturas responsáveis pelas barreiras às pessoas com deficiência, aponte quem são os responsáveis e aponte como isso dificulta ou impede a vivência das pessoas.
Cuidado com os verbos. Evite o uso de verbos como sofrer, padecer. Prefira o uso do verbo “ter”.
Escreva sobre projetos e planos. Busque produzir conteúdo sobre projetos e planos das pessoas com deficiência, não só sobre as situações em que elas podem ser identificadas como vítimas.
Humanize pessoas com deficiência. Lembre-se que a deficiência faz parte da diversidade humana. Portanto, pessoas com deficiência são PESSOAS antes da sua deficiência.
> Conheça o “Ora-pro-nóbis: cultivando alimentação saudável na periferia”, que investiga a alimentação na comunidade Vila Nova, na zona norte de Belo Horizonte. O projeto vai mapear as hortas da comunidade e formar cinco lideranças femininas. O processo será registrado e compartilhado com a comunidade através de materiais impressos distribuídos junto com cestas básicas.
> Ficamos muito felizes com a notícia de que a Géssika Costa, que participou da edição Nordeste da formação de Jornalismo e Território, se tornou correspondente do Lunetas. Vale ficar de olho na cobertura que ela vem fazendo por lá. Aqui, destacamos uma de suas matérias, sobre como a falta de acesso ao gás de cozinha expõe crianças ao risco de queimaduras.
> Aconteceu na semana passada o Festival Prato Firmeza! Foram três dias de conversas transmitidas no nosso canal de YouTube sobre comida, ancestralidade, favela e veganismo. Além dos papos super bons, a programação também teve receitas deliciosas. Vale conferir a receita de mucapata, que Geronimo Vinícius apresentou no primeiro dia.
> Aliás, o Prato Firmeza Preto foi destaque em pauta no SPTV da semana passada! Chegamos a mais de 1300 downloads do guia no site. Pra gente é muito importante saber que mais pessoas querem apoiar o empreendedorismo negro e de quebrada – e que tem gente afim de consumir jornalismo gastronômico fora dos centros, sim.
Um salve e muito obrigada a todas as apoiadoras e todos os apoiadores da Énois ♥
Ana Luiza Gaspar, Alessandro Junior, Amanda Rahra, Andrei Rossetto, Angela Klinke, Anna Penido, Alexandre Ribeiro, Bernardo de Almeida, Camila Haddad, Carolina Arantes, Claudia Weingrill, Danielle Bidóia, Daniela Carrete, Danielle Bidóia, Danilo Prates, Darryl Holliday, Evelyn Dias, Felipe Grandin, Fernanda Miranda, Fernando Valery, Flavia Menani, Fred Di Giacomo, Frederico Bortolato, Gabriel Araújo, Giuliana Tatini, Guilherme Silva, Gilberto Vieira, Harry Backlund, Iano Flávio, Juliana Siqueira, Júnia Puglia,Kelayne Santos, Larissa Brainer, Larissa Sales, Luciana Stein, Marina Dayrel, Maire da Silva, Mauricio Morato, Natalia Barbosa, Nataly Simon, Patrícia Grosso, Patty Durães, Rodrigo Alves, Rafael Wild, Renata Assumpção, Ricardo Feliz Okamoto, Susu Jou, Tatiana Cobbett, Thais Folego, Vanessa Adachi, Vinícius Cordeiro e Vitor Abud. Se você quer ver seu nome aqui, basta se tornar nossa apoiadora ou apoiador: benfeitoria.com/enois